sábado, 27 de setembro de 2008

Nem O Tempo Apagou



Categoria: Contos

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O vento castiga as folhas dos coqueiros com violência. O mar está bravo. A chuva que cai parece um véu a cobrir a visão do Antonio, que tenta em vão apagar o seu ontem.
Ele olha pensativo para a imensidão lá fora. Acende um cigarro e tenta se concentrar. Há dias que não consegue pintar, permanece olhando para as telas, pincéis e tintas espalhados, e entre os amontoados ao seu redor, vasculha na esperança de encontrar algo que o traga de volta a realidade. Mas é em vão.
Há meses que já não é mais o mesmo. Este sabe que jamais conseguirá apagar da mente o último encontro que tivera com a Berta. Berta, seu grande amor...
Remexe as papeladas e encontra a carta que um dia antes de partir ela lhe mandara pela derradeira vez...
"Antonio, um dia ousaste roubar o meu coração e com ele a minha vida. Deixaste para trás um espírito atormentado pela dor e pelo desespero.Foram anos onde nunca te pedi nada em troca, contentei-me em viver das saudades e das muitas recordações nossas... alimentei-me de sonhos e ilusões na vã esperança de que um dia irias retornar e trarias contigo toda a minha extinta vontade de viver. Mas as minhas esperanças foram morrendo lentamente com o passar do tempo e de forma incrível o meu amor foi aumentando pouco a pouco, e crescendo espantosamente dentro de mim..."
Antonio pára a leitura. Uma dor aguda aperta-lhe o coração, talvez seja a mesma tortura pela qual a Berta passou...
Volta a olhar para fora... o tempo continua igual. A chuva que cai torrencialmente parece compartilhar com ele do seu sofrimento. Olhando para a tela à sua frente, fita com pusilanimidade aquele olhar que parece acusá-lo de traição, de abandono, de rejeição. Nunca, o Antonio conseguiu retratar a fisionomia da Berta. E aquele olhar que um dia tanto o enlouquecera de desejos, hoje acusava-o violentamente.
Antonio volta a olhar para a carta e recomeça a ler... isto tornou-se um ritual nos últimos meses de sua amarga solidão.
"... Hoje a revolta infiltrou-se dentro da profunda ferida que trago na alma e que inultimente o tempo tentou cicatrizar. Posso estar sendo injusta, mas nesse momento eu te juro que teu último gesto para comigo foi apenas de indiferença, e eu não tive coragem de ver pessoalmente se tudo era real. Tenho certeza que a dor teria sido mortal... ouvir dos lábios que tantas juras de amor me fizera, e ver nos teus olhos indiferença ao invés do fogo
que tua alma deixava transparecer. Eu preferi partir sem tornar a te ver,pois eu prefiro que me odeies, se já não fores capaz de me amar, que me desprezes se já não sou para ti o que ainda desejas, eu até poderia aceitar a tua rejeição, caso eu tivesse caído no esquecimento. Tudo eu poderia suportar de ti, jamais porém a tua indiferença, que me consomeria as entranhas e que por certo tentaria inutilmente aniquilar com o meu grande amor, que ainda consegue resistir a tormenta, do meu amor desenganado por ti."
Mais uma vez o Antonio interrompe a leitura. A tristeza e o sofrimento que lhe invade a alma vem à tona em forma de lágrimas, lágrimas esta que o tempo não consegue secar.
Como encontrar a Berta? há meses o Antonio tenta, mas ninguém lhe soubera informar para onde ela tinha ído. Apenas sumira deixando atrás de si aquela carta acusadora, sem dar ao Antonio a chance de se defender.
Olha para a carta que parece queimar-lhe as mãos. Ele não soubera que a Beta o havia procurado. Ele nunca desconfiou que haviam sido vítimas de pessoas inescrupulosas. Tendo descoberto a verdade, já se fazia tarde. E hoje o Antonio não passa de um misantrópico, vivendo de recordações e sendo corroído pela incerteza de um perdão.
Com desespero ele olha para o final da carta que nunca chegara a ler, pois tinha medo do escárnio que ela poderia conter. Era melhor parar por alí, não precisava ir mais além, se um dia encontrasse a Berta pediria a ela que lhe contasse o que ele nunca tivera coragem de ler. Durante estes quase dois anos ele repetira o mesmo gesto. Guarda a carta se aproximando dos pincéis que estão espalhados. Junta-os calmamente, guarda as tintas, cobre a tela... momentos depois sai até a varanda e mesmo com todo aquele temporal, fica observando o pranto desolado da natureza que chora copiosamente, talvez chore por um amor perdido, quem sabe?
De súbito um relâmpago ilumina um vulto que passeia despreocupadamente sob aquela torrente d'água. Por certo mais um coração aflito como ele, e sem entender bem por que fazia aquilo, ele sai no encalço da estranha figura. Alcançando-a quando esta pára e ajoelha-se na areia soluçando bem alto, e escondendo o rosto entre as mãos. Ele aproxima-se cautelosamente e fica condoído com aquela demonstração de sofrimento. Tenta falar com ela e encontra dificuldades em se fazer ouvir, o vento e o barulho da chuva, bem como das ondas enfurecidas, dificulta um diálogo entre aqueles dois seres desesperados.
Antonio procura com calma afastar a estranha da proximidade do mar, levando-a para sua casa, onde ao menos o barulho do mar era bem menor.
Abraçado a mulher, ele começa a conversar e mostra-lhe que a maioria das pessoas também têm sofrimentos, e que ele era a prova disso. E ele conta sobre a sua desventura, não mencionara nomes nem tão pouco lugares. A mulher começa a dizer-lhe que a sua história é bastante parecida com a dele. Calados continuam a caminhar, chegando ao terraço ele a convida para entrar. Ela que vinha abraçada a ele, levanta o rosto e o Antonio não acredita no que vê, À sua frente está a sua tão amada Berta. Sofrida, desesperada, tal como ele. Ela tenta afastar-se mas ele a impede. Pede que fique, pois há algo que precisa contar a ela, há algo que precisa perguntar-lhe. E diz que nunca leu o final da carta, pois tinha medo do que ela pudesse conter, e acaba confessando que tinha esperanças de tornar a encontrá-la, pois era também a única forma dele vir a saber toda a verdade sobre aquela amarga carta, pois o medo de sofrer mais, tornara-o um covarde. Ele já havia sofrido muito e não queria aumentar ainda mais a sua dor.
Então a Berta pergunta-lhe se ele havia destruído a carta, ele nega. Ela fala que ele poderia ver por si só o que continha, mas ele se recusa, aí ela fala carinhosamente:
- O que eu falava no final da carta Antonio, é que apesar de tudo, apesar das minhas palavras tão duras, eu afirmava que continuaria a amá-lo para sempre e que eu não perdia a esperança de um dia ainda te-lo de volta para mim, inteiramente meu como outrora. Chorando Antonio a abraça e murmura um pedido de perdão e diz que embora não merecendo, precisa do amor dela para continuar a viver, pois o peso da solidão é muito grande e que ele já não a suporta mais.
Berta o olha apaixonadamente e ambos percebem a calmaria que reina lá fora, tal como em suas almas, agora que a tormenta acabou, a paz reinante em em seus corações contagia a natureza, que aliviada de sua mágoas adormece nos braços do infinito, como Berta acaba adormecendo nos braços do Antonio.

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